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sexta-feira, 17 de abril de 2015

Da Redação - Crime de Posse Irregular de Arma

No final de 2014, foi divulgada amplamente na mídia, em especial no segmento da segurança pública, a decisão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Habeas Corpus nº 294.078/SP, que não considerou o fato de uma arma de fogo apreendida em razão do certificado de registro estar fora do prazo de validade não configurar o crime de posse de arma de fogo previsto no artigo 12 da Lei nº 10.826/2003, porém ao invés de causar uma sensação de indignação na Blosgfera Azul Marinho, foi recepcionada com alívio, pois os procedimentos previstos na Lei para regularização são exigentes, complexos e custosos.

Na decisão, o Relator, Ministro Marco Aurélio Belizze estabelece:

"Na espécie, o paciente foi denunciado pela suposta prática da conduta descrita no art. 12 da Lei n. 10.826/2003, por possuir irregularmente um revólver marca Taurus, calibre 38, número QK 591720, além de dezoito cartuchos de munição do mesmo calibre."  

"Todavia, no caso, a questão não pode extrapolar a esfera administrativa, uma vez que ausente a imprescindível tipicidade material, pois, constatado que o paciente detinha o devido registro da arma de fogo de uso permitido encontrada em sua residência – de forma que o Poder Público tinha completo conhecimento da posse do artefato em questão, podendo rastreá-lo se necessário –, inexiste ofensividade na conduta. A mera inobservância da exigência de recadastramento periódico não pode conduzir à estigmatizadora e automática incriminação penal. Cabe ao Estado apreender a arma e aplicar a punição administrativa pertinente, não estando em consonância com o Direito Penal moderno deflagrar uma ação penal para a imposição de pena tão somente porque o indivíduo – devidamente autorizado a possuir a arma pelo Poder Público, diga-se de passagem – deixou de ir de tempos em tempos efetuar o recadastramento do artefato. Portanto, até mesmo por questões de política criminal, não há como submeter o paciente às agruras de uma condenação penal por uma conduta que não apresentou nenhuma lesividade relevante aos bens jurídicos tutelados pela Lei n. 10.826/2003, não incrementou o risco e pode ser resolvida na via administrativa"

Porém, tal decisão demonstra a total fragilidade do Poder Judiciário Brasileiro, pois no caso o envolvido detinha apenas o certificado de registro expedido em 31/11/1998 pela Divisão de Produtos Controlados da Polícia Civil do Estado de São Paulo, sendo apreendida em 15/03/2013, ferindo os seguintes dispositivos da Lei nº 10.826/2003:

“Art. 5º - O certificado de Registro de Arma de Fogo, com validade em todo o território nacional, autoriza o seu proprietário a manter a arma de fogo exclusivamente no interior de sua residência ou domicílio, ou dependência desses, ou, ainda, no seu local de trabalho, desde que seja ele o titular ou o responsável legal pelo estabelecimento ou empresa”

“§ 3o  O proprietário de arma de fogo com certificados de registro de propriedade expedido por órgão estadual ou do Distrito Federal até a data da publicação desta Lei que não optar pela entrega espontânea prevista no art. 32 desta Lei deverá renová-lo mediante o pertinente registro federal, até o dia 31 de dezembro de 2008, ante a apresentação de documento de identificação pessoal e comprovante de residência fixa, ficando dispensado do pagamento de taxas e do cumprimento das demais exigências constantes dos incisos I a III do caput do art. 4o desta Lei”

Art. 30.  Os possuidores e proprietários de arma de fogo de uso permitido ainda não registrada deverão solicitar seu registro até o dia 31 de dezembro de 2008, mediante apresentação de documento de identificação pessoal e comprovante de residência fixa, acompanhados de nota fiscal de compra ou comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova admitidos em direito, ou declaração firmada na qual constem as características da arma e a sua condição de proprietário, ficando este dispensado do pagamento de taxas e do cumprimento das demais exigências constantes dos incisos I a III do caput do art. 4o desta Lei”

Art. 31. Os possuidores e proprietários de armas de fogo adquiridas regularmente poderão, a qualquer tempo, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e indenização, nos termos do regulamento desta Lei.”

“Art. 32.  Os possuidores e proprietários de arma de fogo poderão entregá-la, espontaneamente, mediante recibo, e, presumindo-se de boa-fé, serão indenizados, na forma do regulamento, ficando extinta a punibilidade de eventual posse irregular da referida arma

A matéria ainda foi objeto do Decreto nº 5.123/2004:

"Art. 67-B.  No caso do não-atendimento dos requisitos previstos no art. 12, para a renovação do Certificado de Registro da arma de fogo, o proprietário deverá entregar a arma à Polícia Federal, mediante indenização na forma do art. 68, ou providenciar sua transferência para terceiro, no prazo máximo de sessenta dias, aplicando-se, ao interessado na aquisição, as disposições do art. 4º da Lei no 10.826, de 2003"

“Art. 70-A.  Para o registro da arma de fogo de uso permitido ainda não registrada de que trata o art. 30 da Lei no 10.826, de 2003, deverão ser apresentados pelo requerente os documentos previstos no art. 70-C e original e cópia, ou cópia autenticada, da nota fiscal de compra ou de comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova admitidos em direito, ou declaração firmada na qual constem as características da arma e a sua condição de proprietário.”

Se não bastasse, o ordenamento jurídico brasileiro é uma bagunça, pois tanto na Lei quanto no Decreto o prazo final é de 30/12/2008, contudo o prazo foi prorrogado pela Lei nº 11.922/2009, que dispõe sobre dividendos e juros de capital por parte da Caixa Econômica Federal:

Art. 20.  Ficam prorrogados para 31 de dezembro de 2009 os prazos de que tratam o § 3o do art. 5º e o art. 30, ambos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003.

Independente da interpretação, a incredulidade da decisão afeta o sentimento daquele que não possa admitir como razoável que durante blitz num estabelecimento comercial (num bar como na decisão mencionada), ou no atendimento de uma ocorrência, o agente de segurança pública encontre uma arma de fogo com certificado de registro vencido e nada faça, por se tratar de mera infração administrativa, sendo que o Nobre Relator ao aventar que cabe ao Estado a apreensão da mesma e aplicar a punição administrativa, demonstrou total desconhecimento da norma, pois tal possibilidade inexiste na norma, cabendo aqueles que estão irregulares a entrega da arma de fogo na Campanha do Desarmamento ou renovar o certificado ou transferir a mesma a terceiro habilitado no prazo de 60 (sessenta dias), caso contrário, não extingue a punibilidade de eventual posse irregular da referida arma.

O desconhecimento é tamanho, pois o cidadão que tiver em sua posse ou guarda arma de fogo com registro emitido por órgão estadual não terão seus pedidos de regularização recebidos, conforme consta no Portal da Polícia Federal:

Após 31/12/2009, quem possuir uma arma de fogo sem registro ou com registro estadual vencido DEVERÁ entregá-la na Campanha do Desarmamento (munido de uma guia de trânsito de arma de fogo obtida em www.entreguesuaarma.gov.br) e receberá uma indenização de R$ 100,00 a R$ 300,00. Quem não promover a entrega de sua arma sem registro ou com registro estadual vencido à Polícia Federal estará sujeito a responder pelos crimes previstos na Lei nº. 10.826/2003.

Porém, entendimento do Nobre Relator parece se firmar nas cortes brasileiras, tanto que a Quarta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na Apelação Crime nº 7006.1056461, aplicou o mesmo princípio no caso:

"Na oportunidade, o denunciado possuía e mantinha sob sua guarda, no interior de um bar de sua propriedade, 01 (um) revólver marca Taurus, acabamento oxidado, calíbre 32, n.º 1175.32 e 04 (quatro) cartuchos calíbre 32, intactos, conforme auto de apreensão da fl. 11 do Inquérito Policial. A arma de fogo e as munições foram apreendidas em abordagem conjunta realizada pela Polícia Civil, Brigada Militar, Corpo de Bombeiros e Vigilância Sanitária em diversos estabelecimentos.

Curiosamente, no caso da arma de fogo não possuir certificado de registro o entendimento não é aplicável, como na decisão do Habeas Corpus nº 307179/RS do STJ em que o Relator, Ministro Sebastião Reis Junior, estabelece: 

"Ademais, a hipótese dos autos trata de posse de arma de fogo de uso permitido, mas não registrada junto aos órgãos competentes (fl. 23). Sendo assim, não se aplica à espécie o entendimento da Corte de que a posse de arma com registro vencido configura apenas infração administrativa"

Inacreditavelmente, após mais de 11 (onze) anos da edição da Lei nº 10.826/2003, tudo que foi ministrado na formação dos agentes de segurança pública estava equivocado, ante a interpretação do judiciário, tanto que no Portal do Departamento de Polícia Federal consta a seguinte orientação: 

"14. Possuo uma arma de fogo sem registro. O que devo fazer?; Perdi o prazo de 31/12/2009 para realizar o registro da arma. O que pode ser feito?

Caso você possua uma arma que não teve seu registro emitido pela Polícia Federal você poderá entregá-la na Campanha do Desarmamento (www.entreguesuaarma.gov.br). Vale lembrar que possuir e guardar uma arma de fogo sem registro é crime de posse irregular de arma."

Na formação dos agentes de segurança pública é notório que em ambos os casos há orientação de que se deve conduzir o envolvido ao distrito policial, sendo que no primeiro por violação ao artigo 12 da Lei nº 10.826/2003, posse irregular, no segundo por violação ao artigo 14 da referida lei, por manter sob sua guarda arma de fogo sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Portanto, inexiste a possibilidade de apreensão sem o cometimento da hipótese prevista no artigo 12 da Lei nº 10.826/2003, que não pode ser confundido com a remissão ao artigo 12 do referido decreto que estabelece os critérios para possuir arma de fogo, entre eles avaliação psicológica e tiro prático.



Ademais, nos casos mencionados foi necessária a contratação de advogado para defesa na ação penal e no habeas corpus, sendo menos custoso se os envolvidos tivessem atendido os requisitos para a regularização da arma de fogo.